Alfredo Rodrigues Duarte nasceu numa casa da Travessa de Santa Quitéria, a São Bento, a 29 de Fevereiro de 1892 — uma data invulgar que apenas se repete de quatro em quatro anos. Por isso, a mãe registou oficialmente o nascimento como tendo ocorrido no dia 25 desse mês, data de aniversário do pai, que era mestre de corte e tinha uma pequena sapataria na Rua de São Bento.
Foi com a mãe que aprendeu a cantar, ainda criança, durante as «descamisadas» do milho no Cadaval, de onde a sua família era originária, tendo migrado para Lisboa pouco antes do seu nascimento. Começou depois a participar nas «cegadas» de rua, desfiles carnavalescos onde o público o viu pela primeira vez em 1908, aos 17 anos, vestido de mulher, numa pantomima inspirada pelo visionamento do filme mudo A Morte do Duque de Guise. Apesar de ser um entre muitos dos participantes nesse desfile (ensaiado no pátio da Vila Maia, junto á Rua Domingos Sequeira), a sua voz foi logo notada.
Gostaria de ter estudado música, vocação que a família igualmente acarinhava. Mas em 1906, aos 14 anos, ficara sem pai e teve de aprender um oficio. Nessa época a família habitava na Vila Mendonça, na Rua de Santo Amaro, à Estrela, uma vez que a primeira casa havia sido demolida para dar lugar ao alargamento da Avenida Pedro Alvares Cabral. Em 1909, haviam-se mudado para a actual Rua Silva Carvalho, em Campo de Ourique, nessa época chamada Rua de São Luís. Começou por ser aprendiz de encadernador na oficina de Paulino Ferreira — aparentemente só para se sentir perto do fadista Júlio Janota, que ali trabalhava. Mas como esta arte o prendia até às nove horas da noite — deixando-lhe pouco tempo para participar nas «cegadas» — mudou de oficio e tornou-se marceneiro.
Contava que o seu primeiro trabalho neste ramo fora uma cruz de madeira para colocar na sepultura do fadista Manuel Rego, que trabalhava como chefe do pessoal menor do Ministério das Subsistências e a quem devia as primeiras duas letras escritas propositadamente para si. Com dois amigos, alugou depois uma casa para montar a oficina e foi aí que se dedicou a aprender os segredos da profissão, construindo camas, guarda-fatos e outras peças de mobiliário.
Chegou a participar na construção de quatro navios de guerra quando trabalhou junto aos estaleiros da Rocha do Conde de Óbidos. Recordaria os seus primeiros passos como artista nessa Lisboa do princípio do século alguns anos mais tarde, numa entrevista: «Depois do Carnaval, o tempo das cegadas dava lugar aos bailes. Em cada bairro havia um, com bufete e "cavalinho" (conjuntos musicais com um mínimo de cinco figuras). Se tivesse mais músicos, o baile já era caro... Nos intervalos, os bailarinos dois rapazes e duas raparigas, ou quatro raparigas — dançavam ao som de cantigas que ninguém sabia quem tinha feito.
A certa altura dizia-se "Rapazes vamos, vamos ao Fado", e a gente cantava, encostados a uma valeta. Comecei a cantar com os rapazes do meu tempo. Tocadores: o Aires dos Fadinhos, o António da Mina, o Júlio Correia, o José Marques, o Armando Machado, o José Graça e o Júlio Proença. íamos para o Jardim da Parada. Depois começaram as Festas de Caridade e, como não conhecíamos os poetas, levávamos latas de quiosque, que custavam um vintém.
Também aproveitávamos os versos que a Voz do Operário publicava semanalmente, e os dos jornais A Alma do Fado, A Guitarra de Portugal e A Canção do Sul, estes últimos fundados por Carlos Harrington e Linhares Barbosa.» Percorria também os «cafés de camareiras», ilumi-ados a gás, na Rua dos Mastros, em Alcântara, na Mouraria e no Bairro Alto; aqui, no café de Maria da Luz, era acompanhado ao piano por um músico invisual conhecido como «O Ceguinho da Luz». Parava também no Catorze do Rato, uma casa de jogo que o dono acabou por transformar em casa de fado, onde Alfredo Marceneiro cantava acompanhado por piano, bandolim e guitarra. Foi aí que conheceu o poeta popular Manuel Soares, que acabou por lhe oferecer duas letras para fado. «Eu, até então, só cantava para as raparigas e rapazes da minha idade.
Pois o Manuel Soares, do Inten-ente, ouviu-me e deu-me duas das suas letras. Mais tarde, o Joaquim Câmara — também cantador e dos de fama — levou-me à Carioca da Trindade, uma taberna que tinha por dono um homem chamado Silva e onde se cantava o fado. Aí conheci o Manuel Rego, que começou a fazer letras para mim.» Foi também no Catorze do Rato, e nos cafés da Rua da Atalaia, que ganhou fama ao tornar-se o primeiro fadista a cantar de pé, «para eles me verem bem», e atrás dos guitarristas, normalmente em situações de desgarrada ou desafio entre cantores que, muitas vezes, geravam conflitos entre a assistência — «nós os cantores, ficávamos na calma, como fazem hoje os tipos da luta livre». Mas somente no início dos anos 20 passou a ser conhecido com o apelido de «Marceneiro», ao ser assim apresentado no cartaz de uma festa organizada por Manuel Soares, Alfredo Correeiro e José Bacalhau. Até então, muitos dos seus conhecidos — como o guitarrista José Marques, que o acompanhava habitualmente — tratavam-no por «Alfredo Lulu» por «andar sempre todo catita», no vestir e no andar. Um dos seus primeiros traços de distinção foi o laço, mais tarde substituído por um lenço de seda ao pescoço, com nó largo. No entanto, normalmente cantava a troco de comida e bebida, a que os admiradores acrescentavam no final da noite um envelope com uma maquia recolhida entre todos, a qual era variável.
Depois de Manuel Rego e Manuel Soares, foram muitos os poetas populares de Lisboa que escreveram canções para a voz de Alfredo Marceneiro, podendo citar-se, entre outros, os nomes de Manuel Rego, Henrique Rego, Fernando Teles, Avelino de Sousa, Francisco Viana, Silva Tavares, Carlos Conde, Frederico de Brito, António Amargo, Custódio Cutileiro (fundador da Praça de Toiros de Almada) e Linhares Barbosa. Para que os cantadores de fado conseguissem ganhar o seu sustento, uma convenção explícita entre todos levava-os a cantarem apenas uma ou duas noites por semana. Num tempo em que não existiam direitos de autor — «Cada um cantava o seu reportório e mais nada» — Alfredo Marceneiro foi, com Armandinho, um dos artistas fundadores da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses, em 1927.
Só em 1924 — o ano em que participou numa Festa do Fado organizada pelo poeta António Botto, no Teatro São Luís — surgiu o seu primeiro contrato para cantar, no Chiado Terrasse, onde esteve durante dois meses acompanhado por Júlio Correia e Artur Careca. Ganhava quarenta escudos por noite. De dia trabalhava como marceneiro na oficina de Diamantino Tojal — na Vila Berta, à Graça — e no fim do dia actuava no Chiado Terrasse, onde ficava até á meia noite. «Nesse tempo, o Armandinho (Armando Freire) ganhava cinquenta escudos por noite para tocar e ofereciam-lhe também a ceia. O Armandinho era um génio a tocar guitarra. Ele musicava o estilo do cantador. Só depois surgiram Jaime Santos, Carvalhinho e tantos outros. Mas o Armandinho era o maior. Os fadistas da minha época criaram um tipo de fado que o Armandinho musicou. Ora, dentro dessa toada musical, cabiam todas as letras em redondilha maior de sete sílabas.»
Depois, foi contratado para o Olímpia, e logo a seguir para o Ferro de Engomar, seguindo-se outros estabelecimentos, como o Luar da Avenida ou o Solar da Alegria. Foi também um dos primeiros fadistas a actuar nos teatros e retiros do Parque Mayer — nomeadamente no Júlio das Farturas, com Ermelinda Vitória e Renato Varela, onde popularizou o tema «Olhos Fatais» e a desgarrada que mantinha com o Miúdo da Bica (Fernando Farinha). Num concurso para fadistas organizado pelo dono da Rosa Branca, um estabelecimento perto da Rua Morais Soares, ganhou a medalha após ter estado uma hora e vinte minutos em cena para grande gáudio da assistência.
Fez a sua primeira gravação fonográfica em 1929, mas a experiência não o entusiasmou porque gostava de ver o público enquanto estava a cantar, para poder analisar as suas reações. Escreveu vários fados que depois foram interpretados por outros: «Lembro-me de Ti», «Pierrot», «Louco», «Cravo», «Cuf», «Mocita dos Caraçóis», «Olhos Fatais», «Bailarico», «Laranjeira», «A Casa da Mariquinhas», este com música de sua autoria e letra de Silva Tavares.
Em 1930 entrou numa peça de teatro escrita por Avelino de Sousa e levada á cena pelo empresário Lopo Lauer. Seis anos mais tarde, no Teatro Variedades, participou também numa opereta intitulada História do Fado, cujo elenco incluía Beatriz Costa e Vasco Santana. Raramente visto na televisão, a sua única aparição cinematográfica foi no filme O Feitiço do Império, com Ribeirinho e António Vilar.
Foi ele quem apadrinhou e lançou nomes bem conhecidos do meio fadista como Hermínia Silva e Amália Rodrigues — que começou a cantar pela mão de Marceneiro, no Retiro da Severa, em Lisboa, num elenco que incluía José Porfírio. Em 1959, aos 67 anos, obteve a reforma da Caixa de Previdência dos Artistas de Variedades e recordava o princípio do século como o tempo em que «o fadista cantava por gosto. Não interessava muito se havia ou não havia público. Cantávamos nas ruas, fazíamos serenatas e reuníamo-nos aqui ou ali para cantarmos ao desafio. O mais frequente era irmos a festas em casas particulares, mas sempre sem combinarmos preços. Depois apareceram as casas típicas e começou-se a ganhar mais regularmente. Cantei em todas, apesar de só ter recebido em meia dúzia delas, tais como o Machado, o Faia, o Luso, a Parreirinha, a Severa, a Viela, e pouco mais...».
Na verdade, nunca trocou a sua profissão de marceneiro pela de artista. O seu primeiro disco estereofónico foi editado apenas em 1961, uma colectânea «com o melhor da canção nacional» e o título The Fabulous Marceneiro. A 25 de Maio de 1963 foi-lhe feita uma festa de homenagem intitulada «Madrugada do Fado», no Teatro São Luís, com início á meia-noite e organização a cargo do empresário Vasco Morgado, da locutora Maria Leonor e do actor Raul Solnado. Figura mítica de Lisboa, o Ti Alfredo, como era conhecido pelos fadistas e os amigos, não abandonaria nenhuma das suas actividades após a obtenção da reforma.
No fado, enquanto autor e intérprete exímio dos quatro géneros da canção popular lisboeta («Fado Bacalhau», «Fado Corrido», «Fado Menor» e «Fado Mouraria») foi um dos expoentes máximos de todos os tempos, sem nunca ter saído do Pais, e raras vezes de Lisboa: «Eu que me chamo Alfredo, mas Duarte/ Sou para toda a gente o Marceneiro/ Este apelido em mim, que pouco valho/ Da minha honestidade é forte indício/ Sou marceneiro sim, porque trabalho/ Marceneiro no fado e no oficio.»
A sua última subida ao palco ocorreu a 24 de Junho de 1980, quando recebeu a Medalha de Ouro da Cidade de Lisboa das mãos do então presidente da Câmara Municipal, Krus Abecasis — curiosamente, uma vez mais no Teatro São Luís. Nesse mesmo ano foi figura de destaque nas Festas de Lisboa, quando a marcha do Bairro Alto lhe foi dedicada. Mas já com noventa anos, era ainda uma figura da noite lisboeta, cujas casas típicas percorria até altas horas da madrugada.
Raramente era visto durante o dia e orgulhava-se de, com essa idade, os seus cabelos continuarem pretos, sem necessidade de os pintar. Sobre o fado, «uma canção de revolta e amorosa», gostava de dizer que «Isto tem uma técnica: as suspensões e as paragens têm de ser dadas consoante o pensamento do autor e não ao sabor do improviso. Ao dizer os versos, tem de existir uma aproximação do intérprete com a letra. Só assim a plateia vive o fado.» Nos versos de um dos seus fados cantava que: «Com lídima expressão e voz sentida/ Hei-de cumprir no Mundo a minha sorte/ Alfredo Marceneiro toda a vida/ Para cantar o fado até à morte.»
Faleceu na manhã de 26 de Junho de 1982, com 91 anos cumpridos. A filha disse aos jornalistas que Alfredo Marceneiro: «Nunca esteve doente, sofria apenas de velhice.» Uma última frase célebre do fadista, retirada de uma entrevista à Ilustração Portugueza, em 1931: «O meu maior desgosto foi o gramofone, que veio industrializar o fado. Que vergonha!» Em 1989, antecipando a comemoração do centenário do nascimento do fadista, a EMI-Valentim de Carvalho publicou o duplo álbum O Melhor de Alfredo Marceneiro. O seu neto, Vítor Duarte, publicou em 1995 uma biografia de Alfredo Marceneiro, acompanhada por urna compilação em CD (ed. Ovação).
DISCOGRAFIA:
1961 The Fabulous Marceneiro (LP, Colum-bia).
1964 Há Festa na Mouraria (LP, Columbia).
1972 Nos Tempos em Que Eu Cantava (LP, Columbia).
1982 Saudade, (LP, Valentim de Carvalho).
1989 O Melhor de Alfredo Marceneiro (LP, EMI).
1993 O Melhor de Alfredo Marceneiro, vol. 2 (LP, EMI).
1995 Recordar Marceneiro (CD, Ovação).
1996 A Casa da Mariquinhas (CD, Carave-la-EM!).
1997 Biografia do Fado (CD, EM1).
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