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sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A televisão como agregadora de massas


O grande elemento aglutinador do imaginário dos anos 80 foi, sem dúvida, a televisão. A RTP era a única estação, dividida por dois canais complementares — havia até um sinal a piscar no ecrã para avisar que estava a começar um novo programa no outro canal. As emissões não duravam 24 horas, longe disso. No início da década de 80, o número de horas de emissão chegou até a ser reduzido, primeiro para poupar energia (!), mais tarde para cortar na despesa pública. Era caso para dizer, como n’A Árvore dos Patafúrdios: por incrível que pareça, não há nada que não nos aconteça!

Para Isabel Ferin da Cunha, investigadora na área dos media na Universidade de Coimbra, “os anos 80 caracterizam-se pelo domínio das telenovelas brasileiras e pelos concursos familiares”. O ano de 1977 é decisivo na história da televisão portuguesa, ficando marcado por dois programas precursores do seu género. A 16 de maio, estreava Gabriela, a primeira telenovela brasileira, que fazia parar o país — até o Parlamento adaptou os seus horários para que os deputados não perdessem um episódio — e introduzia novo vocabulário e comportamentos. Isabel Ferin da Cunha comenta ao Observador que “os espectadores, sobretudo as classes médias portuguesas em ascensão, percebiam os conteúdos das telenovelas como modelos de comportamentos, estilos de vida e valores inerentes à modernização”, o que foi um dos fatores do seu sucesso. Assim se inaugurava um filão que se manteria em alta durante toda a década de 80: entre 1980 e 1989, a RTP passaria 37 novelas brasileiras e cinco portuguesas

O ano de 1977 é decisivo na história da televisão portuguesa, ficando marcado por dois programas precursores: a telenovela "Gabriela" e o concurso "A Visita da Cornélia".

Três semanas depois de Gabriela, arrancava A Visita da Cornélia, um concurso apresentado por Raul Solnado e Fialho Gouveia, que juntava provas de cultura geral e de criatividade. Um dos concorrentes que se destacou neste concurso foi José Fanha, poeta que acompanhara Zeca Afonso e os “baladeiros” na época do 25 de abril. Foi depois autor de vários programas infantis, como o Zarabadim, em que cunhou a expressão pozinhos de perlimpimpim, e a incontornável Rua Sésamo. José Fanha recorda ao Observador os anos 80 como uma “época notável para a produção de ficção portuguesa, que se estendeu até meados dos anos 90”. Apesar de disporem de meios de produção muitos arcaicos, Fanha e os autores da altura tinham “uma enorme liberdade criativa” e havia um cuidado especial com a qualidade dos textos, “que hoje se perdeu”.

Nas limitadas horas de emissão, a grelha da RTP conseguia ter bastante variedade, com espaço para programas tão diversos como os desenhos animados de Leste trazidos por Vasco Granja, o didatismo do TV Rural e da Telescola, o humor disruptivo de Herman José n’O Tal Canal, ou a revelação de novos talentos artísticos n’O Passeio dos Alegres de Júlio Isidro. Já para não falar das séries americanas que conquistavam a juventude, como O Justiceiro, Os Três Duques, MacGyver ou Os Soldados da Fortuna, ou da série espanhola Verão Azul.

O monopólio da RTP é determinante para explicar este período de crescimento da televisão. Nuno Markl sublinha que “a RTP não tinha concorrência, por isso podia ter A Balada de Hill Street em horário nobre, ou dar-se ao luxo de produzir experiências loucas que acabavam por tornar-se populares, como o Duarte e Companhia. Até os concursos eram de uma imaginação prodigiosa, como o 1, 2, 3. E o público respondia a isso, também porque não conhecia outra realidade.”

A soma de todos estes sucessos transformou a televisão “num dos agentes mais ativos da modernização”, segundo Isabel Ferin da Cunha. A investigadora dá como exemplo do aumento da influência da televisão nos anos 80 a multiplicação da “caixinha mágica” nos lares portugueses: “em 1977, o número de aparelhos de televisão por mil habitantes rondava os 150”, ao passo que “no final da década de 80, cerca de 90% dos lares já tinham televisão”.

Paralelamente, com os gravadores de vídeo surgiu o hábito de registar momentos de televisão para a posteridade. Muito antes da RTP Memória e do YouTube, cada espectador já tinha uma maneira de rever vezes sem conta os episódios dos seus programas favoritos. Esta possibilidade de gravação veio a permitir que hoje haja tanto material disponível na internet, mesmo de “cromos difíceis”, como A Árvore dos Patafúrdios ou A Princesa Insensível.

“Foi principalmente a tecnologia a um preço acessível que permitiu que essa década pudesse ficar registada”, acredita Paulo Ferreira, criador de um dos melhores acervos de recordações da década de 80, o site Mistério Juvenil. Criado em 2000, centrava-se inicialmente na literatura juvenil de aventura e mistério, sobretudo de Enid Blyton, mas o site acabou por destacar-se pela coleção de vídeos e sons de publicidade, música, cinema e televisão. No seu canal de YouTube, podemos encontrar anúncios memoráveis, como o do Restaurador Olex (“Um preto de cabeleira loira ou um branco de carapinha não é natural”) e o das Fantasias de Natal (“o coelhinho foi com o Pai Natal e o palhaço no comboio ao circo”). “É como uma enciclopédia da infância através das imagens e do som”, orgulha-se Paulo Ferreira, que acalenta o sonho de criar no futuro um museu (virtual ou não) da infância.

https://observador.pt/especiais/por-que-gostamos-tanto-dos-anos-80/



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