Parece possível dizer que o fenómeno musical que hoje designamos como fado, e que tem a sua definição essencial no conjunto dos fados clássicos, se definiu num período relativamente recente - nos últimos 70 anos... - independentemente, já se vê, de beber raízes e matrizes musicais e poéticas numa evolução que todo o estudo conhecido faz remontar, no mínimo, ao início do século passado.
Debruçando-nos sobre este aparente e surpreendente facto, acaba-se porém por admitir que, no fundo, talvez não haja motivos para surpresa. O fado é afinal contemporâneo daquilo que tornou possível não propriamente escrevê-lo, mas... gravá-lo! Ou seja, dos progressos tecnológicos. E seria uma ingenuidade, que a musicologia inteiramente desmente, supor que o aparecimento dos meios técnicos de reprodução sonora (a gravação, a rádio, a amplificação massiva, etc.) se limitariam a fixar fenómenos musicais preexistentes: sabemos hoje que, na música como em todas as artes, a evolução tecnológica condiciona tanto quanto determina a evolução estética, e o fado pré-anos do disco e da rádio não era, não podia ser, o mesmo dos que se lhes seguem.
A condicionante dos três minutos por canção, universalizado praticamente até hoje pela limitação técnica da duração de um lado de um disco de 78 rotações, é apenas um exemplo. A que há a acrescentar muitos outros. E, determinantemente, a profissionalização de músicos e executantes que a edição, a transmissão radiofónica e os locais de espetáculo não teatrais (as casas de fado) geraram e permitiram, dando origem a um núcleo musical que, progressivamente, iria definir e fixar padrões próprios que, progressivamente, se libertariam dos que anteriormente sofriam da produção do teatro de opereta e da música de salão. A meu ver, é este novo quadro tecnológico e profissional (e também social e urbano) que permite que, entre outros, Armandinho, Martinho da Assunção, Marceneiro e Amália, constituam nas décadas de 20 a 40 um género musical, de raízes antigas, sem dúvida, mas autonomizado musicalmente, iconicamente e publicamente.
Que muito poema do fado lamente, ainda, o «fado como era dantes» tem razões sociais, culturais e mesmo políticas claras: julgo, contudo, que tem bem pouca verdade. E não é bom serviço prestado ao fado negar-lhe a contemporaneidade de ser uma música urbana criada pelo povo, e muito especialmente pelo povo de Lisboa, na modernidade do século XX e na qual, por isso mesmo, tão idealmente se acolheram afinal, sem saudosismos nem marialvas, versos como os de Mourão-Ferreira, Lima Couto, Homem de Melo ou Ary dos Santos.
Ruben de Carvalho in «Biografia do Fado»

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